Sobre teonomia, Lei e Graça (II)
Consoante o que foi afirmado no último texto, é mesmo espinhoso dialogar com os “teonomistas”, a uma, porque eles não conseguem trocar idéias, uma vez que as suas peremptórias intervenções se pautam pela unilateralidade, e, a duas, por se sentirem investidos de algo como uma “delegação divina” , especificamente no sentido de trazerem de volta a “Lei mosaica” com a sua aplicação literal às relações humanas atuais. A ideologia hermética, o “purismo” me remetem a outro tipo de fanatismo, como aquele que levou a sociedade alemã a apoiar o homenzinho do bigode ridículo, ou, no sentido religioso, os muçulmanos adeptos do Islã. O fato é que sempre há um motivo, por mais estapafúrdio que seja, a direcionar pessoas a cometerem danosos atos em nome da “fé” – ou daquilo que acreditam ser a vontade de Deus.
Não dou à teonomia o sentido de heresia que os seus defensores querem me impor, ou impor a todos aqueles que pensam diversamente deles. Sou teonomista no sentido de reconhecer o governo de Deus sobre a humanidade, acima de toda a criação, exatamente pela sua condição de transcendência. O Criador certamente governa, sustenta e mantém o universo, criado por Ele unicamente através da sua vontade e do seu comando (haja luz...).
Quero crer que a “Lei de Deus” vai muito além da lei mosaica. Enxergo essa “Lei” nas relações humanas travadas entre santos e ímpios, em toda a providência sabiamente usada pelo Santíssimo em direção à plena e cabal execução do seu decreto eterno. Essa “Lei”, a meu ver, está contida nas mais ínfimas e “insignificantes” ações humanas até às mais sublimes; desde os grandes feitos registrados por brilhantes personalidades da História universal até a primeira palavra pronunciada por uma criança em tenra idade. O império de Deus está sobre este mundo como um amálgama, vinculando pessoas, coisas, eventos, catástrofes, enfermidades, dores, alegrias, vitórias, derrotas, justiça, injustiça, etc.
A pequena semente quase microscópica na sua admirável transformação a germinar e a tornar-se árvore, a flor a desabrochar, o ritmado flanar das asas do pássaro em voo, a suave brisa refrescante que sopra sem “motivo”, as ondas do mar em seu eterno movimento de ir e vir, tudo remete à “Lei de Deus”. Aos “teonomistas”, essa minha digressão parecerá despropositada, bem sei.
A capacidade do homem em se organizar política e socialmente, bem como a autocensura que se impõe por intermédio da criação de leis capazes de lhe arrefecer a maldade e garantir-lhe direitos, obrigações e restrições à sua liberdade são a prova cabal de que o Altíssimo influencia toda a sua criação, impondo a sua “Lei”, ainda que não o faça “diretamente” pela via da aplicação da lei mosaica, como querem os “teonomistas”. Dou, pois, à teonomia, um sentido muito mais amplo.
Imagino que as leis que criamos por intermédio dos nossos representantes nas Câmaras, Assembléias, governos - democráticos ou não - são uma extensão da “Lei de Deus”, providencialmente usadas por Ele em prol dos seus desígnios secretos e eternos. Não concordo que a “lei mosaica” seja a única expressão da Lei de Deus, ou que tenha permanecido imutável, estagnada, tal como ditada a Moisés no deserto. Certamente que há mesmo uma progressividade da revelação.
Para a consecução da graça comum, quero crer, Deus usa pessoas, coisas e ações; usa as leis dos homens, influenciando nas suas vontades, dirigindo-lhes os “passos” a fim de garantir o resultado eternamente decretado. Nesse diapasão, afiançar a exclusividade da lei mosaica, ou lutar para a sua aplicação única, é querer impor a Deus, por via transversa, a vontade do próprio homem. É semelhante a restringir a ação de Deus ao próprio “achismo” dos defensores ferrenhos da teonomia.
Com temor e tremor eu jamais me arriscaria a afirmar a exclusividade da lei mosaica. E, mais do que isso, crendo na progressividade da revelação, no dinamismo que o próprio Deus infundiu ao homem e à sua criação não posso aceitar o regramento literal da lei mosaica para a atualidade, pois não creio em um Deus anacrônico. Creio, ao contrário, no Deus que move a sua criação ordenadamente, com criterioso cuidado, infundindo-lhe conhecimento e vontade para melhorar e adequar o regramento inicial, ainda que resguardando o modelo, o princípio moral e ético.
Afora a graça comum, Deus toca alguns, regenerando-os, transformando-os, fazendo com que “nasçam de novo”. E são estes que terão a incumbência de “salgar a terra” através da Luz de Cristo. Creio na influência dos regenerados a testemunhar Cristo muito mais do que a imposição da lei mosaica por si só. A influência benéfica desse “remanescente fiel que não dobrou os joelhos a baal” é que fará a diferença e não as pedras dos apedrejadores. Ademais, temos leis e temos Deus no comando das mentes daqueles que pensam o processo legislativo. Vale dizer que Deus tem vontades imediata e mediata, sem que a providência possa mudar o seu decreto eterno.
Enfim, sem entrar no mérito de graça e lei e reconhecendo que os “teonomistas” dão mesmo um significado diferente a ambos, ainda assim fico com a graça, exclusivamente para ser sal da terra, pregando o Evangelho de Cristo e influenciando a muitos, e, com isso, reafirmando os valores cristãos a toda criatura.
Aos que querem impor a Lei mosaica, felicidades.