"Posse non pecare?"
Ousarei caminhar por uma trilha difícil ao falar sobre o pecado original , bem como a condição de anjos e homem pré-queda. Diz-se que o primeiro casal vivia numa condição de completa inocência exatamente por desconhecer o pecado. Diz-se mais. Assevera-se que o casal primevo, antes da queda, vivia em estado de completa pureza e em perfeita harmonia com Deus-Criador. E eu creio nisso, pois a Bíblia, no livro de Gênesis, nos informa assim.
Todavia, a pergunta que não quer calar e que cavouca a minha mente e de tantos outros cristãos que me antecederam, a exemplo de Agostinho, o bispo de Hipona, é: por que houve o mal e o pecado? A resposta a tal pergunta há de desaguar em um tal entendimento que leve, ou à soberania completa de Deus, ou a um certo compatibilismo, onde se concederia ao casal primeiro não somente a vontade livre, como uma completa autonomia do Criador, podendo "escolher não pecar".
Sinceramente, a mim, a afirmação agostiniana acerca do "posse non pecare" vinculado ao casal antes da queda equivale ao livre arbítrio, uma vez que, podendo escolher "não pecar" , mas pecando, dá-se ao homem, ainda que pré-queda, autonomia da vontade. E com isto eu não concordo, embora reconhecendo que a metafísica agostiniana está além da minha capacidade de compreensão.
Na minha compreensão o homem (ou anjo) jamais viveu sob a condição de "poder não pecar", uma vez que a sua natureza, ainda que não caída, mesmo desconhecendo o pecado, não lhe capacitava a tanto. Quero crer que a capacidade de pecar, ou a possibilidade de infringir a Lei Moral sempre acompanhou o homem - e anjos -, estando incrustada na sua natureza.
Dir-se-ia que o homem, feito à imagem e semelhança de Deus (imago Dei), e ainda limpo de pecaminosidade, trazia em si toda a possibilidade de não pecar. A mim essa afirmação implica em que o homem pré-queda se igualava então a Deus, sendo não mais "à sua imagem e semelhança" , mas idêntico a Ele.
Resumindo, creio que ninguém jamais teve livre arbítrio, nem mesmo o primeiro homem e a primeira mulher criados. Tampouco anjos jamais o possuíram, muito menos Lúcifer. E ainda assim, todos os que caíram, Adão, Eva e anjos, foram e são absolutamente responsáveis pela sua queda.
Na medida em que há na eternidade um plano decretivo de Deus que antecede toda a criação, prevendo e determinando todos os acontecimentos futuros, antes que nada houvesse (Salmo 139), não cabe falar em livre arbítrio.
A meu ver, criatura alguma se reveste de tal condição, uma vez que somente o Não-Criado, o Eterno, o Insondável, possui autonomia, logo, a capacidade eterna e imutável de não-pecar. Com isto, não quero impor a Deus a responsabilidade ou a autoria do mal e do pecado, uma vez que nesse aspecto eu me alinho com a CFW e com Agostinho. O mal e o pecado não existem de per se, não tendo identidade própria, por assim dizer. Concordo que o mal não tem existência ontológica, enquanto o bem sim, por fazer parte da essência de Deus. Confesso não querer continuar por esta seara, por me faltar conhecimento metafísico sobre o assunto. Porém, concordo que o mal, neste aspecto, por não ter existência ontológica, é não-ser. Logo, o mal, para existir, depende da ação efetiva de uma criatura, sendo impossível existir pela ação direta de Deus, ou mediante a sua execução direta. Assim, a meu ver, ainda que tal raciocínio esteja colocado de forma simplista, o mal existe porque criaturas existem. Todavia, o mal jamais existiria se não fosse a vontade de Deus em criar . E nisto Deus é soberano, tudo existindo por Ele e para Ele; para a sua glória Eterna.
Acredito que toda a problemática pode residir no fato de o homem ter sido criado "à imagem e semelhança de Deus", mas não exatamente como Ele. Fosse o homem criado exatamente como Deus, poderia ele não somente "não pecar", como seria Deus.
Houve um decreto eterno de Deus que, sabiamente, proveu o homem de inúmeras capacidades, porém limitadas. Da mesma forma os anjos. Deus, na sua insondável sabedoria, fez criaturas menores. O fato de serem menores do que Ele , obrigatoriamente os levaria à queda. É uma espécie de lógica. Assim, a meu ver, não havia a menor possibilidade da não ocorrência da queda, posto que a lógica da criação era esta.
Pode ser que esta minha visão seja mais próxima do supralapsarianismo, uma vez que Deus decretou a queda antes mesmo da criação, num plano eterno e independente. Eis que a ordem do decreto Eterno independe de limitações temporais.
A conclusão a que chego é que somente Deus tem livre arbítrio. Nenhuma criatura, homem ou anjo, jamais o tiveram. Talvez os termos usados aqui neste pequeno e humilde arrazoado sejam simplistas, assim, peço antecipadamente desculpas aos que se dispuserem a lê-lo.
7 comentários:
Irmão,
confesso precisarei de mais tempo para considerar o texto. Porém, de pronto, seria importante considerarmos que a autoria do mal sairá em apenas duas possibilidades: Deus é seu autor, o que compromete sua santidade; ou Deus não é seu autor o que compromete sua soberania criadora (dualismo).
Como a minha extensão e as Escrituras não concluem sobre o assunto, desta feita, evito as conjecturas.
Sobre o livre-arbítrio: É possível considerar que este CONCEITO sofre profunda mudança quando o tratamos antes e depois da queda. Portanto, meu amado Irmão... preciso pensar mais.
Minha admiração.
Em Cristo
Caro irmão Paulo,
Realmente o assunto é espinhoso, não o fosse, as suas consequências não estriam gerando profundas discussões há séculos, ou milênios.
Deus é ou não o autor do mal e do pecado? Se as consequências são duas, como você afirmou - e eu concordo - ou é autor ou é santo, uma coisa excluindo a outra, o que sobra? O certo é que o mal existe no mundo, como também é certo que Deus é soberano. Logo, Deus é santo e ao mesmo tempo soberano. então, como isso se opera? Eis a questão que tanto aflige teólogos (e eu não sou um). A minha concepção é que Deus é Santo, Soberano e autor de todas as coisas em sua causação. Ao mesmo tempo Deus não executa o mal, porque é santo, mas o mal existe porque Deus assim permitiu (ou quis), ao criar seres passíveis de cometê-lo. E nesse sentido, Deus não é o autor do mal por não cometê-lo em razão da sua santidade, mas é o autor do mal no sentido de "permiti-lo", por intermédio das suas criaturas.
É mais ou menos isso meu irmão!
Grande abraço e que Deus o abençoe ricamente!
Ricardo.
Irmão
" E nesse sentido, Deus não é o autor do mal por não cometê-lo em razão da sua santidade, mas é o autor do mal no sentido de "permiti-lo", por intermédio das suas criaturas".
Se Ele apenas permitiu, quem o criou?
Um dilema sem solução, ficarei com o salmista. (131)
Quanto ao livre arbítrio, entendo que não há liberdade plena (nem em Deus).
A liberdade plena que rompe com a natureza é apenas utopia.
O livre arbítrio deve ser visto como a imposição da natureza do pecado impossibilitando a prática dos bens espirituais.
Como antes da queda não havia a natureza de pecado, este conceito não é aplicável.
qual a natureza original de Adão? Apenas podemos conjecturar.
Há verdades que não foram reveladas, Deus é muito mais que sua revelação.
Há verdades em Deus que estão além da minha capacidade de entender...
Um grande abraço, lerei mais o seu texto.
Em Cristo.
Paulo,
Eu detesto usar o termo "permitir" - e nunca o uso. Usei-o no texto e me arrependi imediatamente, pois permitir, para Deus, é o mesmo que fazer, criar.
Eu digo que Deus é autor de tudo na sua causação inicial (nada existe apartado da vontade criadora de Deus), inclusive do mal. Mas não é o seu autor no que concerne à execução, que pertence exclusivamente à ação das criaturas. Nesse sentido é que acho necessário fazer a diferenciação.
Mas pra dizer a verdade, sempre tive a impressão de que na questão do mal, sua existência e autoria, há coisas ocultas, as quais jamais chegaremos à plena compreensão, por pertencerem à égide Divina. Nesse sentido há algo mais do que afirmar que "Deus é o autor do mal", pois é óbvio que Ele é o autor de tudo na sua causação.
Mas é exatamente o que eu quero: avançar nesse conhecimento através da discussão com outros irmãos que igualmente buscam avançar.
Grande abraço!
Ricardo.
Ricardo,
gostei muito do seu texto, pois ele está muito próximo do que creio a Bíblia nos revela.
Em inúmeras passagens Deus é a origem de tudo, seja o bem, seja o mal, seja a vida, seja a morte, seja a alegria, seja a dor. Temos de entender que tudo passa pelo decreto, e se a Queda foi decretada, ela foi "desejada" por Deus.
Este assunto nos levará a duas conclusões: ou Deus é soberano ou não.
Paulo, em Rm 9, parece estar diante do mesmo problema [provavelmente um interlocutor ou um sistema de pensamento à sua época que "apelava" para a injustiça de Deus caso ele elegesse criaturas para a perdição], e qual foi a sua resposta? "Mas, ó homem, quem és tu, que a Deus replicas? Porventura a coisa formada dirá ao que a formou: Por que me fizeste assim? Ou não tem o oleiro poder sobre o barro, para da mesma massa fazer um vaso para honra e outro para desonra?" [v. 20-21].
Um pouco antes, ele está diante de outra questão, citando Jacó e Esaú: "Porque, não tendo eles ainda nascido, nem tendo feito bem ou mal (para que o propósito de Deus, segundo a eleição, ficasse firme, não por causa das obras, mas por aquele que chama)... Como está escrito: Amei a Jacó, e odiei a Esaú. Que diremos pois? que há injustiça da parte de Deus? De maneira nenhuma"[v. 11, 13-14]. A resposta é de que Deus pode fazer o que bem entende, segundo a sua vontade, e ainda assim ele não pode ser acusado de injusto, mau e imperfeito.
Acredito que o maior problema é entender que Deus pode ser afetado pela sua criação, de tal forma que ela "altere" sua natureza. Deus é imutável, e assim sendo, nada do que criou [inclusive o mal, metafisicamente falando] pode afetar-lhe. O bem é parte do seu caráter ou natureza, enquanto o mal é criado, pois não faz parte dela. Assim como o pecado; por isso, Deus não peca quando ordena a morte de nações inteiras, quando decreta a morte de homens, ou quando decreta o pecado de Adão e Eva. Apenas suas criaturas podem pecar e praticar o mal.
Realmente é um assunto espinhoso, e que a maioria "foge" dele como se isso pudesse mudar a sua fé. Acontece que a própria Escritura tem exemplos de sobra da ação divina sobre os homens, de forma que eles, endurecidos, pratiquem o mal, e, assim, cumpram o eterno e perfeito decreto.
Como a Bíblia nos revela, a Lei Divina não foi criada para Deus, mas para suas criaturas. Ela revela o caráter de Deus, mas ele não está sujeito a ela. De tal forma que apenas as criaturas serão julgadas por ela. Deus não pode ser julgado por ninguém, pois não há ninguém acima dele que o possa julgar. Sua justiça é perfeita e santa, logo, é por ela que todos serão julgados; e por sua autoridade em ordenar que a Lei seja cumprida é que todos, sem exceção, somos feitos responsáveis, quer sejamos livres ou não para cumpri-la.
Por falar em liberdade [no sentido de livre-arbítrio, de poder escolher entre duas opções opostas sem coação ou influência] em momento algum a Escritura se refere à nossa obrigação de obedecer a Lei porque somos livres de Deus. Já que ninguém pode ser livre de Deus. Como está escrito, pelo poder da sua palavra, Cristo sustenta todo o universo [não apenas fisicamente, através de leis físicas, mas moral e espiritualmente também].
Bem, há muita coisa para ser pensada sobre esta questão, e não dá para entrar em todos os detalhes em um comentário, mas graças a Deus que você e alguns irmãos se dignam a buscar entender essa questão tão importante [especialmente na apologética], assim como eu tenho "quebrado" a minha cabeça também [rsrs]. Sabendo que devemos pedir sabedoria e discernimento ao Espírito Santo para não irmos além do que nos foi revelado, mas também para não ficarmos aquém da revelação.
Grande abraço!
Cristo o abençoe!
PS: Vou republicar no "Guerra pela Verdade", ok!
Jorge,
Eu me lembro que você escreveu um texto anteriormente e que talvez este meu tenha grande semelhança com ele. Não é plágio (rsrs), mas diria que você chegou a algumas conclusões primeiro do que eu. Confesso que estas pequenas conclusões a que cheguei vieram depois de muito pensar, de prolongadas reflexões. E tenho certeza que o Espírito Santo está me mostrando, que estou sendo guiado pelo Espírito de Deus, assim como você.
Eu sou grato a Deus, especialmente quando penso que fiquei anos, próximo ou dentro de uma igreja arminiana, sem refletir sobre a grandeza e soberania de Deus, mas agora, por sua graça e misericórdia, estou sendo guiado ao entendimento verdadeiro.
Não procuro nenhuma jactância com isso, pois o que realmente almejo é ter uma maior intimidade com o Criador, sabendo que tudo vem dEle. Você tem inteira razão: Deus é justo, soberano e bom, inclusive quando usa o mal para os seus propósitos, conforme relatam as Escrituras. Quem poderá discutir com Ele? Certamente não serei eu, tenho dito por aí, quando observo alguns pseudos-sábios deste século a arrazoar sobre o "Deus amoroso", mas sem aceitar o Deus déspota, Senhor da criação, que faz viver e faz morrer. Estes amam o seu deus, que não é certamente o Deus soberano descrito na Bíblia.
Se me fosse dada a escolha real de ser "livre de Deus", ou de ter "livre arbítrio", eu diria não, pois se assim fosse, escolheria certamente o mal e o inferno.
Porém, ao contrário do Paulo, esse irmão a quem aprendi a apreciar, e até de você, penso que Deus é o único ser que tem livre arbítrio, por não estar preso a qualquer limitação. Dizer que Ele é escravo de "si mesmo" ou das suas próprias decisões , para mim, é reducionismo. A partir do momento em que Deus faz o que faz e como faz,da forma como quer, sem constrangimento, interferência ou condicionante, Ele é livre.
Eu diria que muita coisa que eu discordei de você com relação àquele texto, hoje eu concordo. E sei que isso é obra do Espírito Santo, que antes de me mostrar, já havia te mostrado. Por isso acho tão importante as discussões a respeito de uma melhor forma de nos aproximarmos do Criador racionalmente, o que não significa que não seja também sobrenaturalmente.
Grande abraço e que Deus o abençoe. Ah, e seja novamente bem-vindo, depois de longa ausência.
Ricardo.
Ricardo,
a falta de tempo tem me impedido de ser mais presente nos blogs dos irmãos e amigos, mas um tempinho extra pode nos dar este prazer... [rsrs].
Sobre Deus ter o livre-arbítrio penso o seguinte: Deus é imutável em sua natureza, e pode fazer o que quiser, da forma que quiser, com quem quiser, quando quiser; mas ele não pode fazer nada que vá contra o seu caráter. Como ele é perfeito, santo, infinito e justo, não poderia ser injusto, ímpio, finito e imperfeito. Nesse aspecto, Deus jamais poderia escolher essas coisas.
Mas reconheço que ele é o único que pode tomar uma decisão isenta ou de forma neutra, visto não haver nada que o coaja ou exerça "pressão" exterior sobre ele. Mas se atentarmos para a sua natureza, veremos que ela o impedirá de tomar certas decisões. Por isso, mesmo sendo uma "pressão" interna, Deus não está livre para decidir de maneira oposta e contrária ao que ele é. Por isso, concordo com o pr. Paulo de que Deus não tem o livre-arbítrio.
Mas isso é apenas uma conjectura, que talvez você possa desenvolver melhor no futuro em uma postagem.
Abraços.
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