sábado, 18 de junho de 2011

"Posse non pecare?"



Ousarei caminhar por uma trilha difícil ao falar sobre o pecado original , bem como a condição de anjos e homem pré-queda. Diz-se que o primeiro casal vivia numa condição de completa inocência exatamente por desconhecer o pecado. Diz-se mais. Assevera-se que o casal primevo, antes da queda, vivia em estado de completa pureza e em perfeita harmonia com Deus-Criador. E eu creio nisso, pois a Bíblia, no livro de Gênesis, nos informa assim.

Todavia, a pergunta que não quer calar e que cavouca a minha mente e de tantos outros cristãos que me antecederam, a exemplo de Agostinho, o bispo de Hipona, é: por que houve o mal e o pecado? A resposta a tal pergunta há de desaguar em um tal entendimento que leve, ou à soberania completa de Deus, ou a um certo compatibilismo, onde se concederia ao casal primeiro não somente a vontade livre, como uma completa autonomia do Criador, podendo "escolher não pecar".

Sinceramente, a mim, a afirmação agostiniana acerca do "posse non pecare" vinculado ao casal antes da queda equivale ao livre arbítrio, uma vez que, podendo escolher "não pecar" , mas pecando, dá-se ao homem, ainda que pré-queda, autonomia da vontade. E com isto eu não concordo, embora reconhecendo que a metafísica agostiniana está além da minha capacidade de compreensão.

Na minha compreensão o homem (ou anjo) jamais viveu sob a condição de "poder não pecar", uma vez que a sua natureza, ainda que não caída, mesmo desconhecendo o pecado, não lhe capacitava a tanto. Quero crer que a capacidade de pecar, ou a possibilidade de infringir a Lei Moral sempre acompanhou o homem - e anjos -, estando incrustada na sua natureza.

Dir-se-ia que o homem, feito à imagem e semelhança de Deus (imago Dei), e ainda limpo de pecaminosidade, trazia em si toda a possibilidade de não pecar. A mim essa afirmação implica em que o homem pré-queda se igualava então a Deus, sendo não mais "à sua imagem e semelhança" , mas idêntico a Ele.

Negrito
Resumindo, creio que ninguém jamais teve livre arbítrio, nem mesmo o primeiro homem e a primeira mulher criados. Tampouco anjos jamais o possuíram, muito menos Lúcifer. E ainda assim, todos os que caíram, Adão, Eva e anjos, foram e são absolutamente responsáveis pela sua queda.

Na medida em que há na eternidade um plano decretivo de Deus que antecede toda a criação, prevendo e determinando todos os acontecimentos futuros, antes que nada houvesse (Salmo 139), não cabe falar em livre arbítrio.

A meu ver, criatura alguma se reveste de tal condição, uma vez que somente o Não-Criado, o Eterno, o Insondável, possui autonomia, logo, a capacidade eterna e imutável de não-pecar. Com isto, não quero impor a Deus a responsabilidade ou a autoria do mal e do pecado, uma vez que nesse aspecto eu me alinho com a CFW e com Agostinho. O mal e o pecado não existem de per se, não tendo identidade própria, por assim dizer. Concordo que o mal não tem existência ontológica, enquanto o bem sim, por fazer parte da essência de Deus. Confesso não querer continuar por esta seara, por me faltar conhecimento metafísico sobre o assunto. Porém, concordo que o mal, neste aspecto, por não ter existência ontológica, é não-ser. Logo, o mal, para existir, depende da ação efetiva de uma criatura, sendo impossível existir pela ação direta de Deus, ou mediante a sua execução direta. Assim, a meu ver, ainda que tal raciocínio esteja colocado de forma simplista, o mal existe porque criaturas existem. Todavia, o mal jamais existiria se não fosse a vontade de Deus em criar . E nisto Deus é soberano, tudo existindo por Ele e para Ele; para a sua glória Eterna.

Acredito que toda a problemática pode residir no fato de o homem ter sido criado "à imagem e semelhança de Deus", mas não exatamente como Ele. Fosse o homem criado exatamente como Deus, poderia ele não somente "não pecar", como seria Deus.

Houve um decreto eterno de Deus que, sabiamente, proveu o homem de inúmeras capacidades, porém limitadas. Da mesma forma os anjos. Deus, na sua insondável sabedoria, fez criaturas menores. O fato de serem menores do que Ele , obrigatoriamente os levaria à queda. É uma espécie de lógica. Assim, a meu ver, não havia a menor possibilidade da não ocorrência da queda, posto que a lógica da criação era esta.

Pode ser que esta minha visão seja mais próxima do supralapsarianismo, uma vez que Deus decretou a queda antes mesmo da criação, num plano eterno e independente. Eis que a ordem do decreto Eterno independe de limitações temporais.

A conclusão a que chego é que somente Deus tem livre arbítrio. Nenhuma criatura, homem ou anjo, jamais o tiveram. Talvez os termos usados aqui neste pequeno e humilde arrazoado sejam simplistas, assim, peço antecipadamente desculpas aos que se dispuserem a lê-lo.

7 comentários:

Paulo Brasil disse...

Irmão,

confesso precisarei de mais tempo para considerar o texto. Porém, de pronto, seria importante considerarmos que a autoria do mal sairá em apenas duas possibilidades: Deus é seu autor, o que compromete sua santidade; ou Deus não é seu autor o que compromete sua soberania criadora (dualismo).
Como a minha extensão e as Escrituras não concluem sobre o assunto, desta feita, evito as conjecturas.

Sobre o livre-arbítrio: É possível considerar que este CONCEITO sofre profunda mudança quando o tratamos antes e depois da queda. Portanto, meu amado Irmão... preciso pensar mais.

Minha admiração.

Em Cristo

Ricardo Mamedes disse...

Caro irmão Paulo,

Realmente o assunto é espinhoso, não o fosse, as suas consequências não estriam gerando profundas discussões há séculos, ou milênios.

Deus é ou não o autor do mal e do pecado? Se as consequências são duas, como você afirmou - e eu concordo - ou é autor ou é santo, uma coisa excluindo a outra, o que sobra? O certo é que o mal existe no mundo, como também é certo que Deus é soberano. Logo, Deus é santo e ao mesmo tempo soberano. então, como isso se opera? Eis a questão que tanto aflige teólogos (e eu não sou um). A minha concepção é que Deus é Santo, Soberano e autor de todas as coisas em sua causação. Ao mesmo tempo Deus não executa o mal, porque é santo, mas o mal existe porque Deus assim permitiu (ou quis), ao criar seres passíveis de cometê-lo. E nesse sentido, Deus não é o autor do mal por não cometê-lo em razão da sua santidade, mas é o autor do mal no sentido de "permiti-lo", por intermédio das suas criaturas.

É mais ou menos isso meu irmão!

Grande abraço e que Deus o abençoe ricamente!

Ricardo.

Paulo Brasil disse...

Irmão
" E nesse sentido, Deus não é o autor do mal por não cometê-lo em razão da sua santidade, mas é o autor do mal no sentido de "permiti-lo", por intermédio das suas criaturas".

Se Ele apenas permitiu, quem o criou?

Um dilema sem solução, ficarei com o salmista. (131)

Quanto ao livre arbítrio, entendo que não há liberdade plena (nem em Deus).

A liberdade plena que rompe com a natureza é apenas utopia.

O livre arbítrio deve ser visto como a imposição da natureza do pecado impossibilitando a prática dos bens espirituais.

Como antes da queda não havia a natureza de pecado, este conceito não é aplicável.

qual a natureza original de Adão? Apenas podemos conjecturar.

Há verdades que não foram reveladas, Deus é muito mais que sua revelação.

Há verdades em Deus que estão além da minha capacidade de entender...

Um grande abraço, lerei mais o seu texto.

Em Cristo.

Ricardo Mamedes disse...

Paulo,

Eu detesto usar o termo "permitir" - e nunca o uso. Usei-o no texto e me arrependi imediatamente, pois permitir, para Deus, é o mesmo que fazer, criar.

Eu digo que Deus é autor de tudo na sua causação inicial (nada existe apartado da vontade criadora de Deus), inclusive do mal. Mas não é o seu autor no que concerne à execução, que pertence exclusivamente à ação das criaturas. Nesse sentido é que acho necessário fazer a diferenciação.

Mas pra dizer a verdade, sempre tive a impressão de que na questão do mal, sua existência e autoria, há coisas ocultas, as quais jamais chegaremos à plena compreensão, por pertencerem à égide Divina. Nesse sentido há algo mais do que afirmar que "Deus é o autor do mal", pois é óbvio que Ele é o autor de tudo na sua causação.

Mas é exatamente o que eu quero: avançar nesse conhecimento através da discussão com outros irmãos que igualmente buscam avançar.

Grande abraço!

Ricardo.

Jorge Fernandes Isah disse...

Ricardo,

gostei muito do seu texto, pois ele está muito próximo do que creio a Bíblia nos revela.
Em inúmeras passagens Deus é a origem de tudo, seja o bem, seja o mal, seja a vida, seja a morte, seja a alegria, seja a dor. Temos de entender que tudo passa pelo decreto, e se a Queda foi decretada, ela foi "desejada" por Deus.
Este assunto nos levará a duas conclusões: ou Deus é soberano ou não.
Paulo, em Rm 9, parece estar diante do mesmo problema [provavelmente um interlocutor ou um sistema de pensamento à sua época que "apelava" para a injustiça de Deus caso ele elegesse criaturas para a perdição], e qual foi a sua resposta? "Mas, ó homem, quem és tu, que a Deus replicas? Porventura a coisa formada dirá ao que a formou: Por que me fizeste assim? Ou não tem o oleiro poder sobre o barro, para da mesma massa fazer um vaso para honra e outro para desonra?" [v. 20-21].
Um pouco antes, ele está diante de outra questão, citando Jacó e Esaú: "Porque, não tendo eles ainda nascido, nem tendo feito bem ou mal (para que o propósito de Deus, segundo a eleição, ficasse firme, não por causa das obras, mas por aquele que chama)... Como está escrito: Amei a Jacó, e odiei a Esaú. Que diremos pois? que há injustiça da parte de Deus? De maneira nenhuma"[v. 11, 13-14]. A resposta é de que Deus pode fazer o que bem entende, segundo a sua vontade, e ainda assim ele não pode ser acusado de injusto, mau e imperfeito.
Acredito que o maior problema é entender que Deus pode ser afetado pela sua criação, de tal forma que ela "altere" sua natureza. Deus é imutável, e assim sendo, nada do que criou [inclusive o mal, metafisicamente falando] pode afetar-lhe. O bem é parte do seu caráter ou natureza, enquanto o mal é criado, pois não faz parte dela. Assim como o pecado; por isso, Deus não peca quando ordena a morte de nações inteiras, quando decreta a morte de homens, ou quando decreta o pecado de Adão e Eva. Apenas suas criaturas podem pecar e praticar o mal.
Realmente é um assunto espinhoso, e que a maioria "foge" dele como se isso pudesse mudar a sua fé. Acontece que a própria Escritura tem exemplos de sobra da ação divina sobre os homens, de forma que eles, endurecidos, pratiquem o mal, e, assim, cumpram o eterno e perfeito decreto.
Como a Bíblia nos revela, a Lei Divina não foi criada para Deus, mas para suas criaturas. Ela revela o caráter de Deus, mas ele não está sujeito a ela. De tal forma que apenas as criaturas serão julgadas por ela. Deus não pode ser julgado por ninguém, pois não há ninguém acima dele que o possa julgar. Sua justiça é perfeita e santa, logo, é por ela que todos serão julgados; e por sua autoridade em ordenar que a Lei seja cumprida é que todos, sem exceção, somos feitos responsáveis, quer sejamos livres ou não para cumpri-la.
Por falar em liberdade [no sentido de livre-arbítrio, de poder escolher entre duas opções opostas sem coação ou influência] em momento algum a Escritura se refere à nossa obrigação de obedecer a Lei porque somos livres de Deus. Já que ninguém pode ser livre de Deus. Como está escrito, pelo poder da sua palavra, Cristo sustenta todo o universo [não apenas fisicamente, através de leis físicas, mas moral e espiritualmente também].
Bem, há muita coisa para ser pensada sobre esta questão, e não dá para entrar em todos os detalhes em um comentário, mas graças a Deus que você e alguns irmãos se dignam a buscar entender essa questão tão importante [especialmente na apologética], assim como eu tenho "quebrado" a minha cabeça também [rsrs]. Sabendo que devemos pedir sabedoria e discernimento ao Espírito Santo para não irmos além do que nos foi revelado, mas também para não ficarmos aquém da revelação.
Grande abraço!
Cristo o abençoe!
PS: Vou republicar no "Guerra pela Verdade", ok!

Ricardo Mamedes disse...

Jorge,

Eu me lembro que você escreveu um texto anteriormente e que talvez este meu tenha grande semelhança com ele. Não é plágio (rsrs), mas diria que você chegou a algumas conclusões primeiro do que eu. Confesso que estas pequenas conclusões a que cheguei vieram depois de muito pensar, de prolongadas reflexões. E tenho certeza que o Espírito Santo está me mostrando, que estou sendo guiado pelo Espírito de Deus, assim como você.
Eu sou grato a Deus, especialmente quando penso que fiquei anos, próximo ou dentro de uma igreja arminiana, sem refletir sobre a grandeza e soberania de Deus, mas agora, por sua graça e misericórdia, estou sendo guiado ao entendimento verdadeiro.

Não procuro nenhuma jactância com isso, pois o que realmente almejo é ter uma maior intimidade com o Criador, sabendo que tudo vem dEle. Você tem inteira razão: Deus é justo, soberano e bom, inclusive quando usa o mal para os seus propósitos, conforme relatam as Escrituras. Quem poderá discutir com Ele? Certamente não serei eu, tenho dito por aí, quando observo alguns pseudos-sábios deste século a arrazoar sobre o "Deus amoroso", mas sem aceitar o Deus déspota, Senhor da criação, que faz viver e faz morrer. Estes amam o seu deus, que não é certamente o Deus soberano descrito na Bíblia.

Se me fosse dada a escolha real de ser "livre de Deus", ou de ter "livre arbítrio", eu diria não, pois se assim fosse, escolheria certamente o mal e o inferno.

Porém, ao contrário do Paulo, esse irmão a quem aprendi a apreciar, e até de você, penso que Deus é o único ser que tem livre arbítrio, por não estar preso a qualquer limitação. Dizer que Ele é escravo de "si mesmo" ou das suas próprias decisões , para mim, é reducionismo. A partir do momento em que Deus faz o que faz e como faz,da forma como quer, sem constrangimento, interferência ou condicionante, Ele é livre.

Eu diria que muita coisa que eu discordei de você com relação àquele texto, hoje eu concordo. E sei que isso é obra do Espírito Santo, que antes de me mostrar, já havia te mostrado. Por isso acho tão importante as discussões a respeito de uma melhor forma de nos aproximarmos do Criador racionalmente, o que não significa que não seja também sobrenaturalmente.

Grande abraço e que Deus o abençoe. Ah, e seja novamente bem-vindo, depois de longa ausência.

Ricardo.

Jorge Fernandes Isah disse...

Ricardo,

a falta de tempo tem me impedido de ser mais presente nos blogs dos irmãos e amigos, mas um tempinho extra pode nos dar este prazer... [rsrs].

Sobre Deus ter o livre-arbítrio penso o seguinte: Deus é imutável em sua natureza, e pode fazer o que quiser, da forma que quiser, com quem quiser, quando quiser; mas ele não pode fazer nada que vá contra o seu caráter. Como ele é perfeito, santo, infinito e justo, não poderia ser injusto, ímpio, finito e imperfeito. Nesse aspecto, Deus jamais poderia escolher essas coisas.

Mas reconheço que ele é o único que pode tomar uma decisão isenta ou de forma neutra, visto não haver nada que o coaja ou exerça "pressão" exterior sobre ele. Mas se atentarmos para a sua natureza, veremos que ela o impedirá de tomar certas decisões. Por isso, mesmo sendo uma "pressão" interna, Deus não está livre para decidir de maneira oposta e contrária ao que ele é. Por isso, concordo com o pr. Paulo de que Deus não tem o livre-arbítrio.

Mas isso é apenas uma conjectura, que talvez você possa desenvolver melhor no futuro em uma postagem.

Abraços.

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