Perdão e humildade
Há momentos em que necessitamos do "freio" invisível, da auto-censura que impede que caiamos no ridículo, ou que cometamos os erros mais crassos ou espalhafatosos. Nem significa que nesses momentos estejamos a ouvir os outros, mas apenas os ecos dos nossos próprios pensamentos a retinir em nossos ouvidos... e então nos abandonamos a pensar.
Esse ensimesmamento nem sempre traz dor, ou tristeza, nem mesmo ressentimentos ou mágoas. São apenas lembranças, pensamentos, reflexões. Um exercício pleno de autoanálise. A busca de remédio para sentimentos contraditórios.
As relações pessoais nos aprisionam, a proximidade com o "outro" é tão necessária quanto escravizante. A mente, esse carrossel incessante a girar, girar, processa milhões de emoções contínuas e rápidas, e muitas vezes nos damos conta que deixamos de apreender o essencial. Pegamo-nos a nos debruçar no acessório, abandonando o principal. Ficamos à margem das sensações, quando deveríamos mesmo era mergulhar no oceano da existência plena, completa; bela e ao mesmo tempo dolorosamente excruciante.
Não me apego ao existencialismo, à busca das respostas para o sentido da vida com base na sabedoria 'deste século', não é isso. Cristo me satisfaz plenamente, todas as respostas estão nEle. Mas ainda que tendo a promessa do porvir, este mundo nos aflige de tal maneira que muitas vezes nos sentimos fracos. Vivemos aqui - por enquanto - e nos relacionamos com os nossos semelhantes. E é aí que residem todas as agruras. Estamos aqui, mas não somos daqui. Conversamos com 'eles', mas não sentamos em suas rodas, nem andamos no 'seu' conselho, tampouco trilhamos o 'seu' caminho. O nosso prazer, sem dúvida, está no Senhor (paráfrase ao Salmo 1).
O apóstolo Pedro diz, em uma das suas Epístolas, que devemos confirmar a nossa eleição. Estranho isso, pois se somos eleitos, a vontade dAquele que nos elegeu se confirmará. Todavia, eu consigo compreender essa aparente contradição dentro de uma perspectiva de responsabilidade.
Tudo isto para falar de perdão. Um grande rodeio semântico a desaguar nesse dilúvio emocional chamado perdão. Sou um cristão, sinto amor pelos meus irmãos, mas também sinto raiva. Amo e ao mesmo tempo repilo. Quero abraçar o meu semelhante, mas também quero estapeá-lo. Essa luta é permanente e cansativa. Tenho o Espírito de Deus em mim, mas também sou homem - falho, pequeno, miserável. Não faço mesmo o bem que quero, mas o mal que não quero... Ah, que sabedoria do apóstolo!
Se perdoar é difícil, muito mais ainda é pedir perdão. Aliás, reformulo o pensamento e as palavras: perdoar envolve pedir perdão primeiro. Exige mergulho em humildade, grandeza de caráter; exige abster-nos de uma suposta razão que nos force a "fincar os pés teimosamente nas nossas convicções mais íntimas".
Pedir perdão, no fundo, é sacrificar certezas arraigadas. Pedir perdão, quase sempre, envolve diminuir-se... Porém, é muito mais do que o adágio: "vão-se os anéis ficam os dedos", ainda que envolvendo o sacrifício de um bem por outro - este outro, maior.
Num paralelo incomum, eu diria que pedir perdão é atitude que envolve amor ágape; é dar sem esperar receber nada em troca. Significa dizer que o que pede perdão não pode esperar de volta pedido idêntico, ou reconhecimento, pelo outro, das próprias falhas. Porque esperar essa retribuição demandaria em nutrir expectativas que poderiam não se traduzir em realidade, tornando inócuo o pedido.
Todavia, nada é mais reconfortante do que o reconhecimento das próprias falhas; saber-se humano, pequeno, frágil. Sentimento de grandeza, de infalibilidade, geralmente impede que se transija, que se flexibilize, que se volte atrás. Ás vezes é necessário sacrificar a certeza de que se tem razão e pronunciar o pedido, mesmo quando isso se traduza em suposta humilhação.
Encerro a reflexão com os versículos abaixo, que têm tudo a ver com a questão:
Lucas 17 3 Acautelai-vos. Se teu irmão pecar contra ti, repreende-o; se ele se arrepender, perdoa-lhe. 4 Se, por sete vezes no dia, pecar contra ti e, sete vezes, vier ter contigo, dizendo: Estou arrependido, perdoa-lhe.
Efésios 4 32 Antes, sede uns para com os outros benignos, compassivos, perdoando-vos uns aos outros, como também Deus, em Cristo, vos perdoou.
Enfim, que exerçamos, acima de tudo, o amor , como Cristo nos ensinou.
7 comentários:
Ricardo,
O bom dessa ambiguidade, é que sabemos que a tristeza existe mas que paralela a ela existe a alegria. E nós sabemos que não é uma mera empolgação, uma alegria supervalorizada, externa, mas A ALEGRIA que nos dá prumo, serenidade, paz. A paz que excede todo o entendimento, afinal é em meio dela que experimentamos essas tristezas, decepções, frustrações nos nossos relacionamentos.
Gosto dos seus textos porque nos mostram como realmente somos, com nossas falhas, MAS principalmente sem qualquer cinismo e/ou teimosia e tão somente com muuuuita vontade de acertar.
Valeu!
R.
Ah, e vc demora, mas quando vem, vem "dicunforça" rss
Regina,
Que bom receber você por aqui novamente. E bom também que você tenha gostado do texto. É que esse tipo de "escrito" introspectivo às vezes não é tão bem compreendido.
Ri muito aqui ao ler o "dicunforça", pois é algo que eu ouvia nos meus tempos de tenra idade - pra você ver que faz muito tempo...
Quanto aos relacionamentos... ah, como são difíceis! Especialmente os mais próximos, consanguíneos. Como eu disse acima, envolve mesmo amor e raiva (rsrsrsrs). O negócio é ir remando e olhando pra frente, para Cristo.
Abraços!
Ricardo.
Aleluia, irmão Ricardo. Até que enfim você venceu o 'desânimo'(cf. o post de 05.09) e escreveu novamente. Já estava sentindo falta. Um grande abraço!
Ricardo,
Meu amigo, o cristianismo é em si uma religião relacional de perdão. Ser cristão é primeiro ser perdoado e então perdoar. Quem não é capaz de perdoar, ainda não entendeu o trabalho que Deus fez naquela cruz.
Ótimo texto, ótima reflexão - como sempre!
Na paz do perdão comprado com sangue...
Esli Soares
Caríssimo Adriano!
Eu que o diga! Até que enfim apareceu, ufa! E aí meu irmão tudo bem com você e a família?
De vez em quando bate um certo desânimo, mas que é vencido com a força do Espírito Santo em nós. Seguir sempre em frente, recuar jamais, e que Cristo seja de fato o único caminho.
Uma coisa é certa, "o choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã", trazendo a paz (de Cristo) que excede todo o entendimento.
Grande abraço, extensivo aos seus queridos!
Ricardo.
Olá Esli,
É exatamente isso mesmo. Exercitar o cristianismo na sua plenitude exige perdão, sacrifícios, enfim, abster-se de muitas coisas que afagam o ego. O verdadeiro cristianismo traz transformação e boas obras - sabendo que estas não são para a salvação. É que muitos "cristãos" querem "conquistar" a salvação com essas tais boas obras, continuando a desconhecer a graça soberana do Deus vivo.
Grande abraço.
Ricardo.
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